terça-feira, outubro 21, 2008

O Pânico de 1873: lições da Longa Depressão

Nos últimos dias, a atenção dos investidores desviou-se da crise do sistema financeiro para a crescente probabilidade de uma recessão económica a nível mundial.

Depois do alívio resultante do início da normalização do funcionamento do mercado monetário, instalou-se o receio de que não será possível evitar a maior recessão económica desde 1982. Segundo estimativas do Fundo Monetário Internacional (FMI), os países desenvolvidos deverão registar um crescimento económico de 1,5% em 2008 e de apenas 0,5% em 2009.

Ainda que a crise actual seja frequentemente comparada na sua gravidade à Grande Depressão dos anos 30 do Século XX, o historiador Scott Reynolds Nelson sugeriu recentemente que será mais útil analisar as causas e os efeitos da Longa Depressão que se seguiu ao Pânico nos mercados financeiros em 1873. Como veremos, as semelhanças com a actual crise são surpreendentes e podem ajudar-nos a perceber como a natureza humana não mudou muito nos últimos 135 anos.

Uma expansão imobiliária baseada em crédito fácil

Na Europa de 1870, em particular no Império Austro-Húngaro (formalizado em 1867) e no Império Germânico (unificado em 1871), floresciam novas instituições financeiras que concediam crédito hipotecário para construção residencial e municipal.

A progressiva facilidade na obtenção de crédito deu origem a uma significativa expansão na construção imobiliária, acompanhada de uma subida aparentemente imparável dos preços dos terrenos. A euforia foi reforçada, entre 1871 e 1873, pelo recebimento das reparações de guerra devidas pela França, na sequência da guerra franco-prussiana de 1870-71. Aliás, alguns dos mais notáveis edifícios nas capitais Viena e Berlim foram construídos neste período.

Também os mercados accionistas locais registavam expressivas valorizações neste período, em especial nos sectores de caminho de ferro, marítimo e industrial.

Uma potência emergente e estimativas irrealistas

Em simultâneo, desenvolvia-se uma nova potência económica, que inundava os mercados internacionais de produtos agrícolas e industriais a preços mais baixos, baseados em ganhos de produtividade, na capacidade do transporte ferroviário e marítimo, e na expansão do comércio internacional.

Entre 1865 (final da Guerra Civil Americana) e 1873, a extensão da rede de caminhos de ferro nos Estados Unidos da América duplicou, tendo sido construídos neste período (conhecido como de Reconstrução) cerca de 56.000 km de vias férreas. Até ao final do século XIX, os EUA tornar-se-iam a maior potência industrial do mundo. Os paralelismos com a expansão da China nos dias de hoje são evidentes.

Em Maio de 1873, tornou-se claro nos países da Europa Central (cujas exportações perdiam competitividade a um ritmo sem precedentes) que as estimativas anteriores sobre um elevado e ininterrupto crescimento económico eram demasiado optimistas. A bolsa de Viena colapsou a 9 de Maio.

O desmoronar do sistema financeiro e a globalização da crise

À medida que os bancos da Europa Central começaram a falir, os bancos britânicos deixaram de conceder crédito, na incerteza de quais seriam as instituições mais afectadas pela crise hipotecária. O custo do crédito entre bancos atingiu níveis anormalmente elevados.

A crise atingiu os EUA em Setembro de 1873. O financiamento da expansão dos caminhos de ferro baseou-se até 1871 na venda de instrumentos financeiros complexos, que prometiam elevadas taxas de remuneração, embora as garantias para os investidores (que eram, de facto, nulas) fossem difíceis de entender. À medida que os investidores (a generalidade deles europeus) começaram a desconfiar destes instrumentos, as empresas de caminhos de ferro começaram a assumir dívida bancária de curto prazo para sustentar a sua expansão. A rápida subida de taxas de juro na Europa alastrou-se aos EUA, afectando de forma significativa as empresas ligadas ao sector ferroviário.

A falência da casa bancária Jay Cooke & Co., uma das mais importantes no financiamento da indústria dos caminhos de ferro, agravou o sentimento de pânico entre os investidores. O mercado accionista corrigiu 25% numa semana, antes de ser encerrado durante 10 dias. Veja-se o paralelismo com a falência do banco de investimento Lehman Brothers em Setembro de 2008.

Nos 3 anos seguintes, faliram centenas de bancos e 18.000 empresas. Abriram também falência 89 das 364 empresas ligadas à construção de caminhos de ferro. A taxa de desemprego atingiu os 14%. Registou-se uma redução significativa dos salários, uma quebra dos preços do imobiliário e o colapso dos resultados das empresas a nível nacional.

Consequências sociais profundas

A Europa, e em especial os EUA, levaram muitos anos a recuperar da crise iniciada em 1873, que ficou conhecida como a Longa Depressão.

Registaram-se neste período as greves mais violentas na história dos EUA, com confrontos mortais entre a polícia e os manifestantes. A Longa Depressão foi de tal forma severa que facilitou a emergência do movimento sindical (até aí ilegal), e mesmo a emergência do fundamentalismo religioso nos EUA. Refira-se que o fim da crise em 1879 coincidiu com o início da maior vaga de sempre de emigração para os EUA.

Na Europa Central, os bodes expiatórios para a crise foram os bancos estrangeiros e em particular os judeus, reforçando o movimento anti-semita. O chanceler alemão Otto von Bismarck tomou significativas medidas proteccionistas, incluindo o aumento das barreiras às importações.

Os milionários aproveitam os preços de “saldo”

Os maiores industriais da época, como Andrew Carnegie e John D. Rockefeller, prosperaram durante a crise, aproveitando as suas reservas de capital para financiar o seu crescimento e comprar os seus concorrentes mais pequenos a preço de saldo, iniciando um processo de concentração industrial.

Andrew Carnegie, de origem escocesa, iniciou a sua fortuna por volta de 1855, investindo em indústrias relacionadas com os caminhos de ferro. Após a Guerra Civil, focou-se principalmente na indústria siderúrgica, controlando em 1889 grande parte da produção de aço nos EUA. Carnegie vendeu as suas participações em 1901, com a intervenção do banqueiro John Pierpont Morgan, dando origem à United States Steel Corporation, a primeira empresa a atingir um valor de mercado superior a 1.000 milhões de dólares. Carnegie é considerado a segunda pessoa mais rica da história.

John D. Rockefeller fundou em 1870 a empresa Standard Oil Company, que progressivamente foi ganhando o controlo quase total da indústria de refinação e distribuição de petróleo nos EUA. Em 1911, o Supremo Tribunal dos EUA ordenou que a Standard Oil (que tinha ainda uma quota de mercado de 64%) fosse dividida em 34 empresas, algumas das quais fazem hoje parte da ConocoPhillips, BP, Chevron e ExxonMobil. Tal como Carnegie, Rockefeller doou grande parte da sua fortuna (considerada a maior de sempre na história) a fundações de cariz científico e social.


Encontramos seguramente um mediático paralelo nos dias de hoje em Warren Buffett, que tem alternado com Bill Gates (fundador da Microsoft) o título de pessoa mais rica do mundo na actualidade. Conforme referimos recentemente neste espaço, Buffett investiu já este ano, através da sua holding Berkshire Hathaway, cerca de 25 mil milhões de dólares em diversas empresas, com destaque para a Goldman Sachs e a General Electric.

Em artigo publicado no passado dia 17 de Outubro no jornal New York Times, Buffett referiu que começou igualmente a investir em acções norte-americanas na sua conta pessoal, argumentando que «as más notícias são o melhor amigo de um investidor. Permitem-lhe comprar uma fatia no futuro da América a preços de saldo».

Em conclusão ...

Muitos dos “ingredientes” do Pânico de 1873 são os mesmos da actual crise: o excesso de concessão de crédito, com base em perspectivas económicas irrealistas; a ameaça de novas potências económicas; o desconhecimento do verdadeiro risco de novos instrumentos financeiros; a falta de confiança entre bancos, bloqueando a concessão de crédito; o progressivo contágio internacional, não deixando nenhum país inserido no sistema de comércio global imune aos efeitos da crise; as oportunidades de investimento que surgem em momentos de adversidade.

A principal lição que podemos tirar da Longa Depressão iniciada em 1873 é que os graves e duradouros problemas sentidos na economia real, na vida quotidiana de todos os cidadãos, em particular os elevados níveis de desemprego, só foram possíveis devido às falências generalizadas no sistema bancário.

Daí a extrema importância da actuação decidida e concertada das autoridades internacionais nas últimas semanas, no sentido de evitar que tal desfecho ocorra em 2008. A resposta das autoridades passou já por cortes de taxas de juro, pela recapitalização e nacionalização parcial de instituições bancárias, por injecções massivas de liquidez nos mercados monetários, pela garantia total ou parcial de depósitos bancários e de empréstimos interbancários, pela alteração das regras contabilísticas mark-to-market, ou ainda por programas de estímulo orçamental.

Note-se que o mundo é hoje mais globalizado do que em 1873, o que facilita a propagação da crise, mas também a pode suavizar a médio prazo: os mercados emergentes representam hoje novas fontes de capital e novos mercados de exportação para os países ocidentais.

Tal como em 1873, os vencedores da crise de 2008 deverão ser as empresas com baixo endividamento e elevados níveis de liquidez, sendo de esperar a intensificação da concentração empresarial. Resta esperar que ainda seja possível evitar algumas das respostas erradas à Longa Depressão, em particular o aumento das barreiras ao comércio.